segunda-feira, 26 de abril de 2010

1.1Contexto da Vanguarda Paulista

“O que é isso companheiro?

Nóis dois vivia intocado e clandestino
Nosso destino era fundo de quintar
Desconfiavam que nóis era comunista
Ou terrorista de manchete de jornar

Nóis aluguemo casa na periferia
No memo dia si mudemo para lá
Levando uma bigue de uma metraidora
Que a genitora si benzia ao oiá

Nóis pranejemo de primero um assarto
Com mãos ao arto, todo mundo pro banheiro
Nóis ria de pensar na cara do gerente
Oiando a gente conferindo o dinheiro

Mas o tar banco acabô saindo ileso
E fumo preso jurando ser inocente
Nóis num sabia que furtar de madrugada
Era mancada pois não tem expediente

Despois de um ano apertado numa cela
O sentinela veio e anunciô:
O delegado perguntô se ocês topa
Ir pras Oropa a troco de um embaixador

Na mesma hora arrumemo passaporte
Pois com a sorte num se brinca duas veis
E os passaporte que demo no aeroporto
Era de um morto e de um lorde finlandêis

E quando veio aquela tar de anistia
Nem mais um dia fiquemo no exterior
E hoje já fazendo parte da história
Vendendo memória,
Hoje nóis é escritor”
(Língua de Trapo, 19821)



Para compreender os elementos mais importantes deste fenômeno, é importante delimitarmos o contexto em que estava inserido. No fim dos anos 70 as rádios estavam executando essencialmente artistas bastante conhecidos da MPB2 : “Menino do Rio” na voz de Baby Consuelo, “Meu bem querer” de Djavan, Milton Nascimento com “Canção da América”, Morares Moreira com “Lá vem o Brasil descendo a ladeira” e “Mania de você' com Rita Lee.3
O Brasil se encontrava em um contexto político ditatorial4 e ainda ocorriam alguns dos chamados festivais da canção, que, de 1968 a 1972, marcaram a música popular brasileira. Apesar de ser o fim da Era do Festivais5, estes eventos ainda estabeleciam parâmetros de visibilidade para os compositores de Música Popular.
No ano de 1979 sobe ao palco do Festival da TV Cultura6 um grupo de jovens, apresentando uma música com forte narratividade, uma espécie de opereta, e de caráter serialista7. A canção, intitulada “Diversões Eletrônicas”, ganha o primeiro prêmio, e seu compositor Arrigo Barnabé é projetado na mídia.
Outros compositores, que depois formariam a chamada “Vanguarda Paulista”, ganharam festivais na mesma época. O Premeditando o Breque participa no mesmo ano do Festival Universitário de Música Popular Brasileira, e tira segundo lugar com “Brigando na Lua”. Itamar Assumpção, no ano seguinte, ganha o Festival da Feira da Vila Madalena.
Jovens compositores de São Paulo estavam entrando em um circuito que, até então, era relacionado às canções de protesto e ao movimento Tropicalista. Esse fenômeno8 musical, encontrou seu público no Teatro Lira Paulistana9, que depois viraria um selo. Localizado no bairro de Vila Madalena, na cidade de São Paulo, o Lira Paulistana foi o meio que deu vazão à demanda criativa da época que não estava contemplada pela grande indústria fonográfica.
A repercussão da crise do petróleo de 1978 era sentida na esfera da produção cultural, tanto quanto o aumento substancial de empresas transnacionais monopolistas na área do entretenimento. Uma transformação que implantou no Brasil uma série de gêneros estrangeiros e discos americanos. Essa foi uma abertura do mercado para o Rock10, já que “a indústria fonográfica adotou um gênero já consumido internacionalmente e potencialmente com menos riscos ao investimento necessário ao trabalho de marketing com as novas bandas para a superação da crise em que o setor se encontrava” (Ghezzi 2003, pp56). Por isso, muito do que foi feito no período buscou outras maneiras de produção, uma vez que as grandes gravadoras já tinham o conhecimento do que gerava lucro e não se interessava em investir em novidades.
Apesar de condições simples (o teatro possuía apenas 200 lugares), os dados do Lira Paulistana são surpreendentes: “ao final de quatro anos de funcionamento ininterrupto (…) um total de quase três mil apresentações e mais de 320 mil espectadores, e centenas de atrações diferentes (música, cinema, vídeo, exposições, lançamentos de discos e livros, etc.) (GHEZZI 2003 pg. 100).
O movimento cultural em torno do teatro11 despertou a atenção da imprensa, que chamou de movimento o que, em princípio, eram inciativas isoladas de compositores, que estavam inseridos em um contexto comum.
A chamada “Vanguarda Paulista”, rotulada pela crítica cultural, não lançou nenhum manifesto, tal qual o “Manifesto Antropofágico”, ou obras conjuntas como os “Tropicalistas”, tampouco assumiu uma postura política comum como a “Nova Canção Chilena” do início dos anos 70. Tratou-se de um momento em que posturas estéticas e políticas diferenciadas passaram a ter maior visibilidade em função do surgimento de espaços de divulgação e meios de difusão de custo mais baixo, “alternativos” aos da indústria cultural.(CARDOSO,2009)

Entretanto, em alguns momentos a Vanguarda Paulista foi considerada o movimento evolutivo decorrente do Tropicalismo12. Napolitano comenta que Arrigo Barnabé “e outros músicos propunham uma linguagem poética e musical anti-convencional, mesclando música erudita de vanguarda, rock e MPB. Assim, essa nova música (...) parecia retomar as experiências radicais do Tropicalismo, que a MPB mais aceita no mercado tinha deixado de lado.” (NAPOLITANO 2006. pp127)
O selo Lira Paulistana resolveu lançar discos de artistas que se apresentavam no teatro. O disco de Itamar Assumpção, Beleléu Leléu Eu, de 1980, o primeiro do selo, alcançou a marca de 18 mil cópias vendidas em três meses. Atualmente, esse disco é reconhecido como um marco do “movimento” Vanguarda Paulista (ALEXANDRE, 2002).
Os músicos alcançaram algum destaque na mídia e também chamaram a atenção de artistas13 já consagrados. Em 1982, o disco Língua de Trapo conseguiu vender 25 mil cópias em dois meses, também pelo selo Lira Paulistana, consolidando o movimento como um expoente da MPB.
O nome Vanguarda Paulista começou a ser reproduzido pela imprensa para designar este grupo de jovens compositores. Vale lembrar que anteriormente ao movimento musical, o termo era atribuído aos poetas concretos (principalmente a Décio Pignatari e aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos) que influenciaram o movimento Tropicalista14:
Ao lado deste espírito antropofágico e dadaísta, a vanguarda paulistana de linhagem mais construtiva, representada pela Poesia Concreta, logo adotou os jovens músicos baianos, percebendo neles a possibilidade de realizar o sonho osvaldiano, de fazer as massas comerem o "biscoito fino" da arte experimental. Caetano Veloso, ao lado de Gilberto Gil, na condição de ídolos pop da nascente indústria cultural brasileira, foram vistos como os arautos deste novo momento da vanguarda paulista e brasileira. (NAPOLITANO)

Apesar de ser tachado de um movimento paulista, muitos de seus integrantes não eram nascidos em São Paulo, o que não é necessariamente antagônico, uma vez que a identidade da capital do estado foi construída a partir desse caráter da diversidade, que agrega pessoas15 de outras localidades16.
O que importa não é de onde vinham os seus componentes, mas sim como foi construída a imagem em torno da Vanguarda Paulista. A imprensa e o público enxergaram naqueles grupos os aspectos paulistanos17, legitimando um movimento regional. A justificativa para chamá-los de Vanguarda foi argumentando que havia uma inovação frente ao que estava sendo proposto pela mídia18 , em especial na MPB.
Esta era uma maneira de unir em um mesmo título artistas com estilos distintos e atrelar com a idéia de uma cidade vanguardista, onde se iniciaram diversos movimentos:
Assim, a cidade reivindica, para citar apenas as décadas de 1950 e 1960, o surgimento do Concretismo, do Tropicalismo (apesar de liderado por baianos, alguns dos acontecimentos mais marcantes deste movimento ocorreram em São Paulo), da vanguarda musical erudita (Música Nova), da Jovem Guarda entre outros. Mais do que isso, a cidade, principalmente a partir dos anos 1950, exala uma espécie de “culto à renovação”. (FENERICK 2007 pp.65)

A própria cidade de São Paulo foi um tema bastante recorrente nas suas composições19. Nos “personagens” e temas da Vanguarda Paulista também vigorava a imagem do marginal urbano, não mais a imagem do “cidadão de esquerda engajado” que marcou as canções de protesto. Se nos festivais dos anos 60 o foco das canções era uma unificação de classe, esses artistas denunciavam o caos urbano, a decadência das cidades. O questionamento não era mais através da comoção popular, mas principalmente através da ironia e do humor.
Esta crítica não se fazia apenas na letra, que neste período era o alvo da censura ditatorial, mas agora estava presente na música, como um elemento de confrontação, em que se incorporavam nos processos composicionais distintos da canção gritos e todo o tipo de recursos, para que a música não fosse mais algo para comover ou cantar, mas para expor um clima de tensão. O “inimigo” estava diluído, não era mais a censura, a ditadura ou a situação política, e sim um sufocamento provocado pelos novos mecanismo oriundos da massificação da cultura e dos bens de consumo. “Se durante os anos de chumbo a censura se fazia basicamente por um viés político, que afetava o lado estético, sem dúvida; após seu fim, a ditadura (censura) passou a ser baseada nas “leis de mercado” impostas por uma indústria cultural cada vez mais globalizada. “ (FENERICK 2007)
Do ponto de vista histórico o movimento estava inserido em um momento político de extrema importância no Brasil: a abertura política20. A Vanguarda Paulista (junto com o Rock Nacional) refletiu este período. A redemocratização do país está presente, ainda que de maneira tímida, em algumas canções, como a do Grupo Rumo:

“Velho comandante
Zécarlos Ribeiro

(...)
Sim, nosso comandante volta, sim
Talvez, quem sabe
Quem sabe, seja brilhante
Cuide bem dele, olha por ele
Olhe por ele, olha por ele
Olhe por nós
E adivinha que adivinha quem vem
Adivinha quem vem
Apontando lá em cima do alto do morro
Gente! é o nosso velho comandante
Esquisito, como ele vem triste
Tristeza não é do seu feitio
Anda sempre bem acompanhado
Detesta solidão
E arranja um jeito de evitar a violência
Que habita o peito dos homens
Talvez, quem sabe
O futuro seja brilhante
(…)21

Tanto o momento de abertura política e estética quanto a cidade de São Paulo, pela sua condição cosmopolita, possibilitou aos compositores da época um diálogo maior com toda a experimentação (OLIVEIRA, 1999). A partir dos elementos históricos e artísticos do seu contexto, é possível mapear suas características. Porém, é importante refletir do que se constitui, como foram construídas e transformadas esses aspectos.

Nenhum comentário: